O FUNERAL DO ÚLTIMO COMUNISTA

Ele foi morto aos 78 anos em um ambiente extremamente vulnerável. Perdeu a vida “por engano”, pois fora confundido com outra pessoa que frequentava o seu local de residência. Como comunista convicto, ele entendia que deveria abrir a sua propriedade para todas as pessoas que não tinham para onde ir, e que, assim como ele, haviam “saído do sistema”, seja voluntariamente ou porque o mundo as excluiu.

Para esse ideólogo morto não bastava ser simpatizante: era necessário exercitar o comunismo nas pequenas coisas da vida. Assim, deixou de ser escravo do sistema capitalista tomando uma série de medidas de ordem prática: deixou de pagar as contas de água, luz, internet, impostos e mensalidades de vários tipos, além de ter abolido os cartões de crédito. Seu mundo consistia em viver nas ruas da cidade, sem chefe, disseminando suas ideias por onde quer que passasse. Parecia mais um mendigo do que um ideólogo. Muitas vezes, seus familiares tentavam se aproximar dessa “ovelha desgarrada” para saber se precisava de alguma coisa, e ele respondia: “Alguém te pediu alguma coisa?”

Além dos correligionários comunistas, apenas um familiar esteve presente ao enterro: seu sobrinho. Durante o rito fúnebre pairava no ar a nostalgia dos tempos da juventude e dos ideais revolucionários que tinham sido defendidos com firmeza e entusiasmo.

Logo no início da cerimônia, uma professora da universidade informou ao sobrinho do homenageado que 25 pessoas queriam falar durante o evento. Ele não imaginava que seu tio fosse tão conhecido! Uma verdadeira celebridade! Refletiu um pouco e acabou concordando com a professora quanto à forma proposta para a condução da cerimônia. Assim, de acordo com as regras previamente estabelecidas, cada correligionário dava o seu depoimento sobre os fatos vivenciados no período da militância comunista.

Apesar da tristeza e da nostalgia que predominavam naquela atmosfera, alguns momentos se tornaram cômicos. Um dos companheiros do comunista morto mencionou que durante o funeral de outro militante, recusou-se a virar à direita para chegar ao respectivo túmulo. Naquela ocasião ele teria dito a seguinte frase: “À direita, nunca!” Diante das suas palavras de ordem, lembraram-se que tiveram de ir ao túmulo, sempre pela esquerda, andando o dobro do previsto!

Enquanto o sobrinho ouvia as palavras de conforto dos correligionários comunistas, pensava: “Ainda bem que eu dispunha de um lugar para enterrar meu tio”. Contudo, ficou chocado com o que ouviu de um dos participantes presentes, que criticava, a boca pequena, o tipo de enterro burguês que o morto estava tendo.

Considerando-se que as tradicionais ideologias estão atualmente em crise, fui sobressaltada pelas seguintes dúvidas: “Seria ele o último comunista? O que significa ser comunista no século XXI?”

 

Esse texto integra a Antologia  de poesias, contos e crônicas: Scortecci 40 anos, volume 2, 1ª edição, São Paulo: Scortecci, 2022, p. 155 – 156. Essa antologia foi lançada na 26ª Bienal do Livro de São Paulo, no dia 2.07.2022.

Esse texto recebeu o Prêmio Speciale del´Editore, no evento Talent Letterario Amici del Viandante, VII Edição, em Pescara, 04.2022, com o nome “Il funerale del comunista“.

Written by : mariagravina

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